#WAVEFACTS - À espera de um milagre...








Numa manhã qualquer de terça feira, ao chegar ao consultório, deparei-me com a recepção lotada. Normal! Absolutamente normal...



Fui até minha sala, verifiquei se tudo estava em ordem e se os prontuários estavam sob a mesa, conforme havia ensinado à secretária. Aparentemente, tudo em ordem.



Os instrumentais estavam estéreis, chequei luvas, sugador, compressor... Rezei, lavei as mãos e pedi que chamassem o primeiro paciente.



Coisas do cotidiano odontológico: uma restauração aqui, uma raspagem ali, orientações e profilaxias nas criOnças, exodontias. Ou melhor dizendo, EXODONTIA.



Grande parte dos pacientes já tinham sido dispensados e devidamente orientados quando, com ar de preocupação, a secretária adentra ao recinto.


_ Dra, tem um paciente lá fora que disse que só sai depois que a Senhora falar com ele.
_ Hã?
_ O homem é grande e ele disse que SÓ VAI EMBORA QUANDO VC RESOLVER O PROBLEMA DELE.


Quando ela falou comigo em "letras garrafais" percebi que, realmente, tratava-se de uma urgência.

Orientei que ela pedisse ao paciente para entrar.

Estava eu sentada em minha cadeira, quando bateram à porta. Desde o incidente do "Salsichão", não atendia de porta fechada. Mas o paciente era educado e deu sinal de sua presença com um TOC TOC firme.

Virei-me para ele e avistei um homem, com aspecto de lenhador. Cerca de 2m de altura por 2m de largura. Mais de 100kg fácil. Melanodermo.

Pedi que ele entrasse e começamos a conversa.


_ Bom dia! Tudo bem? (pergunta cretina para a ocasião, mas era uma forma de quebrar o gelo)


_ Não durmo há 3 dias. Quero que "rrrrrrranque" meu dente.
_ O Senhor procurou algum atendimento antes de vir aqui?
_ Não. E não vou sair daqui enquanto o dente não sair junto.


Ótimo. Lá estava eu, com um paciente pop star! Acredito que todos assistiram o maravilhoso filme "À Espera De Um Milagre". Pois bem... Meu paciente era MUITÍSSIMO parecido com o homem acusado do estupro da menininha! DAQUELE TAMANHOOOOO!









Instantaneamente, lembrei das aulas onde os professores faziam questão de destacar a dificuldade de exodontias em pacientes negros, devido à densidade óssea, tamanho dos dentes, enfim. Aquilo tudo que fez com que eu engolisse o grito no seco.













_ Não saio daqui enquanto o dente não sair. Não quero saber!


Essas foram as palavras do gentil lenhador, digo, Senhor, para mim. E lá fui eu, luva, gorro, máscara, fórceps e, por fim, todos os Santos possíveis e imagináveis que pudessem me dar uma ajuda básica.


Pedi ao paciente que se acomodasse na cadeira enquanto eu montava a bandeja com os instrumentais. Nesse momento, ouço um "crack" e pensei comigo: "Essa merda vai quebrar"... Não quebrou.
Sentei no mocho, aferi pressão. Examinei o elemento dental, com lesão de cárie extensa e anestesiei. Enquanto o anestésico surtia efeito, fui desembalando os envelopes de gaze e alongando os músculos do pescoço.

_ Sentindo anestesiar?


_ Sim.

E lá vou eu. Sindesmótomo descolando o tecido gengival. Elevador apical reto, luxando o elemento. Crack... Menos um pedaço. Continuei com a alavanca e mais uns 3458 cracks e fragmentos dentais vieram até mim.




_ Meu Deus, parece até parcelamento das Casas Bahia! Dente em 48x.

Tentei melhorar o clima de tensão. Em vão.





E continuei luxando...

E luxando...

E luxando. Troquei de alavanca.

Luxando... Luxando... Luxando...

Estalei o pesçoco e os dedos.

Luxando... Luxando... Luxando...

"Ave Maria, cheia de Graça..."

Luxando... Luxando...

E o dente lá, imóvel. IMÓVEL...

Luxando... Luxando...

(eita caracolhes, putisgrila)

Luxando... Luxando...

Levantei do mocho. Meti o pé no controle da cadeira e subi o lenhador até a altura do meu quadril. Ou seja: perto de Deus ele já estava.

Perdi a linha e peguei um fórceps! Meus braços já estavam sem força, mas aquilo tornara-se ponto de honra pra mim. Empunhei o instrumento e comecei com minha força cavalar, na tentativa de fazer aquele dente dar sinal de "quase morte".


Nada.


Debrucei em cima do homem para ter uma visão panorâmica do que estava fazendo. Senti que meu pé direito ameaçou levantar e grudar no peito do paciente, na tentativa de terminar aquela desgraça.

O gorro já colava na testa. O suor escorria pela nuca e fazia uma poça no cós da calça.

Percebi meu grau de nervosismo quando, inconscientemente, falei em voz alta:


_ Hora de morfar!








Ri, sem graça pelo furo, e desejei ser um avestruz pra enfiar minha cabeça de vergonha dentro do alvéolo.


Por fim, eis que vejo o elemento bambear e, com o 69 em mãos, o retirei da cavidade alveolar.


Suturei, enchi a boca dele de gaze e o dispensei, com as devidas orientações e medicaçõe


Duas horas de procedimento. Mãos doloridas... Mas dever cumprido

Dia seguinte, ao chegar no consultório, eis que me deparo com o mesmo homem.


Tremi. Pensei comigo: "Putisgrila... O que esse homem tá fazendo aqui!"


_ Bom dia! Comoo o Senhor está?

_ Estou bem. Vim agradecer a Senhora por ter tirado meu dente.

_ De nada! Não por isso! Mas quando doer de novo, por favor, procure alguém do seu tamanho!


Eu ri, ele riu. Foi embora feliz! E eu entrei no consultório aliviada!






4 Comentários:

Ana Tokus disse...

Ahhauuahhahha! Sensacional! :D

Celia G Barral disse...

Hora de morfar!!!KKKKK
Nunca dei importância pra o que eles falavam.
Sabe, meu filho queria ser o Power Ranger Dourado qdo crescesse.
Pena que ele mudou de idéia. Eu poderia usar a hora de morfar dele qdo aparecesse um Michael Clarke Duncan no meu consultório.

Lilian Pauperio disse...

Muito legal!!!

hahahahaha!

Top pérolas ;)

Roberta disse...

ai ai... sinto um alívio quando leio essas coisas...
vejo que não acontece só comigo!
texto muito bem escrito. destacando o " ave maria cheia de graça" e "aquilo tornara-se ponto de honra pra mim" é a mais pura verdade!

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